Sgarbe para 2022; Carta seis

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Ioana Cristiana
Ioana Cristiana
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especial para
Lab Jornalismo 2050®.
written to
Lab Journalism 2050®.
Data da publicação original:
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9/5/2023
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Em 2022, tive a experiência da mais deliciosa monotonia. É como se. Justamente. O “como se” da literatura. É como se eu tivesse aplicado filtros de cor, de redução de ruído, tivesse baixado a luz, diminuído o contraste. Foi um ano deliciosamente normal, o que, para mim, significa que aprendi muitas habilidades novas, e poderia dizer: se não nos vemos há muito tempo, é possível que eu tenha mudado muito.

Eu me ocupei prioritariamente da política, para a qual dedico duas dissertações (uma pior que a outra). Também assentei em mim o que chamo de “pessimismo sereno”. Acho graça no tanto que, humanos que somos, somos capazes de errar por mera burrice (por ignorância menos, mais por burrice). Nem mesmo um gato falando pode ser mais engraçado.

Discordei de praticamente tudo que li no Instagram. Levados às últimas consequências, aqueles conselhos podem destruir anos de processo civilizador. O mundo, pelo menos no meu ver, precisa de mais gente conversando, mais gente se atrevendo, mais gente dizendo que sim ou não sem medo. É bem o contrário da vida narcísica.

Não existe cultura ou civilização em vidas que vivem para si mesmas. Estão ainda na onipotência do pensamento animal. Às vezes, são nossos colegas de trabalho, às vezes um amor, um amor da família, que pena para todos nós. A simplificação dos memes quase sempre me remete ao riso da forca.

No fim das contas, o que vale é uma certa coragem diante do próprio desejo. Não conheço uma única alma que tenha obtido sucesso sem confessar a si mesma que pode pouco e sabe menos ainda. Tem uma potência enorme nessa conversão à gente mesmo. “Mas não tem revolta não, só quero que você se encontre”. Conheci o homem que ajudou Peninha a escrever essa letra. Ficamos sentados em um banco de madeira, lembrando que a vida é também amor, se é que não é só amor.

Diante de Deus e seus anjos, diante de Satanás e seus demônios, diante da Igreja e da Grande Nuvem de Testemunhas, diante da mais pérfida viela de um bairro tomado pelo tráfico, diante das prostitutas da Visconde de Guarapuava, diante dos sacerdotes de todas as religiões, diante do mundo sem fé e da Santa Sé, diante de Nossa Senhora e São José, e de todos os apóstolos vivos ou mortos, diante dos carros da rápida, das pedras do Passeio Público, diante dos bolsonaristas em frente ao quartéis, diante dos bolsonaristas com sinal trocado nas universidades, diante da foto de Patryck impressa em PVC, diante da pior coleção de livros que uma casa pode ter — a da Tag —, diante de mim, confesso: eu não posso mudar o mundo no grito (embora eu seja excelente de grito).

Eu sei no fundo e na superfície do meu espírito que podemos ser muito felizes, antes de morrer. Que a vida humana pode valer a pena quando damos o primeiro beijo, ou quando fazemos planos eternos. A mensagem é:

“Sabe o que acontece quando a ganância toma o controle: quanto mais você tem, menos você é. A sabedoria sai à rua e grita, e no meio da cidade, faz seu discurso”.

As infinitas ajudas que recebo não têm parado em mim, elas, abundantes que são, têm corrido rios glamurosos e fios de vida em valetas podres. A vida que resiste a água de bateria, a viagens espaciais no vácuo, e a profundezas salgadas e sem oxigênio dos oceanos também dá as caras nas sessões de análise. Quanto mais encontro recursos para destruir as ideias dos outros, mais me aposso da misericórdia que é recorrentemente oferecida a mim.

Quem eventualmente pensa que faço parte de uma grande trama está redondamente enganado. Quem eventualmente pensa em me envolver em uma grande trata está perdendo tempo. Minha vida é realmente indiferente para coisas humanas que não sejam ligadas à grandeza de nossa divindade. Se eu morresse agora, e o julgamento final fosse uma única pergunta, qual fosse “você foi feliz?”, minha aprovação viria da resposta “veja bem, apesar do Senhor não ter sido exatamente claro a maior parte do tempo, eu fiz tudo que sabia”. E pronto. Vocês poderiam imprimir fotos minhas junto à “Novena de São Sgarbe”. Do primeiro ao último dia de minha Santa Novena, vocês terão de rezar:

“Eu não sou o Bono Vox, nem a Madonna, sou uma pessoa essencial para as pessoas em volta de mim. Para eu alcançar [coloque aqui sua intenção], preciso acordar cedo e dormir cedo, ter uma agenda organizada, e me desviar ao máximo de jogos psicológicos. Pela intercessão de São Sgarbe, que Deus deixe de ser um pai autoritário e vingativo, e passe a ser alguém que faço feliz. Amém”.

Pouca coisa pode resistir a uma certa insistência. Se a porta não abre de jeito nenhum, nem com reza, nem com feitiço, nem com todos os efeitos lúdicos e especiais, ali não está o nosso caminho. “A benção de Deus enriquece e não traz dores”. Se aquele senhor mudou de ideia em relação a manter a própria palavra, é uma questão dele rever os próprios princípios.

Conheço cada vez menos de Deus, mas isto eu sei: ele dá preferência a quem se entrega. É melhor dizer “eu não vou” e ir, do que ser o primeiro da fila e não aparecer para o trabalho. Esses dias, disse a ele, “e o Senhor é o mais hipócrita de todos”. Como de costume, eu estava errado. Mas acho que ele entendeu o recado.

Referências

ABNT
SGARBE, V.
Sgarbe para 2022; Carta seis
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Lab Jornalismo 2050.
Curitiba,
2023
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Disponível em:
https://www.jornalismo.digital/lab-jornalismo-2050/gestores-atentos-a-realidade-das-equipes-tem-mais-sucesso
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Acesso em:
Data de hoje
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