Analistas vendem transformações, enquanto impostores lucram com ilusões

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Júlia Caroline de Paula
Júlia Caroline de Paula
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Veiculado originalmente por:
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Lab Jornalismo 2050®.
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Lab Journalism 2050®.
Data da publicação original:
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18/9/2023
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O convite para uma transformação pode ter inúmeras motivações. Em termos empresariais, por exemplo, pode partir da necessidade dos fundadores ou gestores de, ao criar um ambiente propenso à felicidade, aumentar a produtividade e, por consequência, os lucros. Em iniciativas governamentais, impulsionar os servidores e parceiros, pela percepção deles de segurança e reconhecimento, é um jeito de ampliar a criatividade, e de fazer os projetos andarem ainda mais rápido. Essas são motivações legítimas. Mas esses planos tendem a fracassar miseravelmente, apesar das excelentes intenções, se o emissor do convite não der provas de que se submeteu às mesmas transformações que propõe, e que essas o aproximaram de uma vida boa.

O termo “vida boa” pode ser observado a partir de muitos pontos de vista, da sabedoria ao teórico. Ele pode ser explorado pelas perspectivas da filosofia, democracia, teoria crítica (Habermas está frequentemente associado a tal pesquisa), mas nos importa sua versão acessível e carregada de humanidade: uma vida que encontrou um caminho suficientemente bom para diminuir o sofrimento. Uma vida que sofre menos é uma vida boa.

A maturidade, que evidentemente pouco tem a ver com a idade, pede sempre mais coerência. A coerência poupa energia, poupa tempo. O universo, coerente, usa seu poder para criar luzes, estrelas pequenas e distantes. A natureza, coerente, não pensa duas vezes antes de derramar o mar sobre o continente, quando isso deve fazer. Não se dialoga com o ciclone, com a erupção. Quem foi capaz de marcar uma reunião com as profundezas do subsolo e cancelar um terremoto? O aparente caos do ambiente é, a bem da verdade, a coerência da vida.

Nós, uma humanidade frágil diante da natureza e dos sofrimentos causados pelos outros, aprendemos, então, que a coerência é uma aliada da vida. É coerente, para o indivíduo que acredita sobre si mesmo que é menor que os outros, que emita sinais que organizem a consumação de suas percepções. É coerente que quem acredita, erroneamente, claro, que é maior ou melhor que os outros construa cenários que provem a ele que tem razão. Moral da história é: toda e qualquer vida humana, sábia até as últimas consequências, organiza o mundo para continuar viva. Se o único jeito de viver que aprendeu foi submetido, humilhado, mendigo de afetos, é coerente continuar assim, justamente para continuar vivo.

A defesa civil, entretanto, envia SMS quando os riscos de temporais são perigosos. Receber um convite para uma transformação é como um alerta da defesa civil. É um alerta de que as crenças e comportamentos estão prestes a causar mais um dano. Se é possível impedi-lo? Pela coerência: muito provavelmente não. Mas é possível criar planos de emergência, planos de futuro. É possível desocupar áreas perigosas da alma, mudar para paisagens mais altas, sóbrias, e refrescantes.

Quanto a mim (nos próximos parágrafos, decido não usar a tradicional primeira pessoa do plural freudiana), não ouso, não mais, convidar qualquer irmão (como chamo outros humanos) a algo que possa atrasar ou interromper o caminho dele.

Muito antes de acreditar em melhoras na qualidade da análise, da pesquisa, da técnica, tenho devoção pela liberdade humana. Ela pode ir para onde quiser, e terá, sempre que eu tiver condições, e for apropriado, minha companhia.

Se eu tivesse uma verdade universal, eu a apresentaria e, sem qualquer necessidade de convencimento, seria amplamente aceita. Jamais é o caso, porque o que compreendo por verdade pode não fazer o menor sentido para meu irmão. Mas tenho uma verdade ou outra não universal que às vezes é boazinha.

O certo é que costumo confessar a meus críticos intelectuais e políticos que estou em busca de um mapa de coerência. E não vejo a hora de mudar de ideia no que se pode mudar de ideia! De todo modo, realizei a façanha de ser relevante para mim mesmo, o que é muita coisa. Isso me poupa de de cair na lábia dos impostores.

Com isso, espero ter deixado claro que não posso, nem hoje e nem no futuro, prometer que tenho a revelação de um segredo, um jeito infalível, um milagre que pode render gargalhadas e dinheiro. Deixo essas promessas para quem tem experiência com elas: os que iludem e os que são iludidos (quase sempre pagam, em dinheiro, por isso). Isso não me desqualifica como vendedor, entretanto. Sob condições éticas, no papel de teleatendente, fui o melhor em vender débito automático na Tim Sul S/A, em algum mês de 2004, um ano antes de começar minha vida profissional no jornalismo.

Quando você me contratar, vai me remunerar pelo que posso fazer pela transformação que procura para si mesmo e para seus negócios. E será sempre muito mais caro do que os que iludem. Se a coerência é um diferencial de vida, que dirá de mercado.

Sou um pouco mais livre, e um pouco mais feliz, hoje do que fui ontem. Minha observação realista (embora eu seja um pessimista sereno) da vida é um suspiro desiludido. Quando, aos 15 anos, sofri amargamente o término de um namoro que tinha sido a melhor coisa de toda minha vida, e que jamais se repetiria, porque aquela era a minha única oportunidade de felicidade, e naquele momento só me restava viver em luto até minha morte solitária, um amigo que poderia ser meu bisavô me disse: “Vine, sabe qual é a vantagem de estar desiludido? É não estar iludido”.

No começo, deixar de acreditar em promessas deixa a gente incomodado. Depois, vai se tornando um estilo de vida tão sincero, tão honesto, tão coerente. Deixei de exigir dos outros que sejam o que eu espero deles. E não estou nem aí quando me exigem ser o que não sou. Entra por um ouvido e sair pelo outro. Ainda sofro, mas em uma vida boa, que sofre menos. No fim das contas, quem diria, eu sou um homem feliz, na medida do possível.

Referências

ABNT
SGARBE, V.
Analistas vendem transformações, enquanto impostores lucram com ilusões
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Lab Jornalismo 2050.
Curitiba,
2023
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Disponível em:
https://www.jornalismo.digital/lab-jornalismo-2050/gestores-atentos-a-realidade-das-equipes-tem-mais-sucesso
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Acesso em:
Data de hoje
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