Faz uns anos, fui ao Superagui, no litoral do Paraná, para passar ano novo. Naquele época, a ilha ficava cheia de pessoas engraçadas. Tem cada história daquelas vezes. Mas uma que voltou com bastante força agora é a da mulher de cabelo azul.
Estávamos na praça principal da comunidade, uma área não maior que a sala de estar da maior parte das pessoas ricas que encontrei na vida. Bebíamos cerveja e cataia (uma pinga horrorosa que tem fama de ser alucinógena – mas é alucinógena mais por ser pinga do que pelas folhas acrescidas à receita).
Reduto de artistas, jornalistas e gente que não se aborrece com as condições simplíssimas de hospedagem e alimentação, não raro estavam ali quem escreveu com Paulo Leminski, outro que compôs com Ivo Rodrigues, uma infinidade de poeta domésticos, sempre alguém no violão. Foi quando, falando com desconhecidos, de novo, claro, disse que não gostava de música sertaneja. “Dessas novas”, recortei.
Uma mulher alta, magra, trinta e poucos, cabelo bem curtinho azul, às gargalhadas respondeu: “você sabia que o ‘fio de cabelo’ do paletó era um pelo íntimo?”. A gente riu bastante. Na sequência, ela, muito festivamente, contou sobre a música sertaneja, na opinião dela, ter um enquadramento exclusivamente masculino. “O homem é o protagonista o tempo todo. Se a mulher o rejeita, ele não respeita, vai atrás dela mesmo assim”.
Para a mulher de cabelo azul, as mulheres fazerem música no espaço que era exclusivamente dos homens era uma coisa boa, mesmo que, vá lá, as letras não sejam um ideal de beleza.
Guardei comigo. Eu precisava pensar sobre o assunto.
Anos mais tarde, nestes dias, caiu a ficha do quanto a música das mulheres faz um bem enorme para as minhas emoções, para minhas percepções de mundo. Quando ouvi “Troca de calçada”, de Marília Mendonça, lembrei de duas coisas.
Primeiro, das prostitutas da Visconde de Guarapuava, em Curitiba, que trabalham em uma calçada. Depois, do livro A ralé brasileira (SOUZA, 2009) que trata da “puta pobre”.
SOUZA, Jessé et al. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009.