Philomena Cunk é uma documentarista ignorante, porém equipada

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especial para
Lab Jornalismo 2050®.
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Lab Journalism 2050®.
Data da publicação original:
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12/7/2023
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Há alguns anos, Dra. Cida Stier me levou com ela a um treinamento de comunicação para policiais rodoviários federais. Ao fim de uma das fases teóricas, ela propôs um roleplay (uma espécie de “teatro” que simula situações). O “elenco” era um policial com um repórter, em sendo eu o repórter. E o caso era: “um motorista de caminhão morreu em um tombamento, há interrupção de trânsito”. Em frente a uma turma numerosa, seguimos assim:

—Bom dia, tudo bem o senhor? Meu nome é Vinícius, sou repórter. Qual é seu nome?

Papo vai, papo vem, ele chega ao ponto de me contar:

—Uma carreta tombou. Mas temos poucas informações, porque estamos a caminho. — Eu pergunto: —O motorista está bem? — Ao que ele responde: —Ele não está morto? — Nem mesmo o policial conseguiu concluir a frase sem uma gargalhada honesta. A partir disso, todos rimos, porque, digamos, os atores se bateram um pouco com o texto.

Lembro desse episódio quando assisto à personagem inglesa Philomena Cunk (Diane Morgan), produdiza pela BBC. Philomena é uma documentarista ignorante, porém equipada. Como é apresentadora de televisão, tem os diálogos com os entrevistados gravados em vídeo. A postura dela é absolutamente exemplar: voz, roupa, gestos. Mas apesar disso, é burra como uma porta. Os episódios são memoráveis.

Em um deles, ela confunde “Camelot” de Rei Artur com “cum a lot”. Em outro, ela grava em volta de Davi de Michelangelo e se pergunta se, pela ausência na escultura, as pessoas daquela época tinha ânus. Neste a seguir, ela fala sobre as previsões de George Orwell no livro “1984”. Ela reforça que tais previsões foram feitas no livro usando “nada além de palavras” – risos.

Ao que pese a BBC ser uma das mais proeminentes marcar de jornalismo do mundo, junto à ABC dos Estados Unidos, à TV Globo do Brasil, à Deutsche Welle da Alemanha, ao Franceinfo da França, a existência de Philomena a mim não parece mero formato cômico. É, sobretudo, um convite à aprendizagem de rir de nós mesmos.

Há alguns anos, em visita a uma agência de Goiânia, o publicitário Renato Monteiro me contou que a primeira coisa que faziam diante da chegada de um novo projeto de anúncio era passar dias criando as mais óbvias intervenções. Se campanha para um seguro fúnebre, “os preços estão pela hora da morte”, “compre antes que seja tarde”, “quem vai se preocupar os pregos da chuteira”. Naquela ocasião, o trabalho que devia ir à TV era a venda de um plano de saúde para pequenas empresas, com no mínimo sete empregados. Depois do processo de criação, fizeram a Branca de Neve contratar o plano. Uma peça genial!

No jornalismo de televisão há muitas variáveis, como é comum em todos os empregos sujeitos a enormes pressões e instabilidades. Considero que um dos grandes desafios quanto à atração e retenção de talentos seja a habilidade de organização dos repórteres. O que consegue acordar diariamente às 4h, para uma hora depois começar a preparação de um jornal que vai ao ar às 6h, e repete essa atividade diariamente por meses ou anos, tem grande chance de ocupar o posto de âncora. Só por esse motivo já se teria encontrado um funcionário exemplar. Por outro lado, quando a variável ordem está dura demais, o trabalho criativo pode ficar minguado às vezes. “Jornalismo é metade negócios, metade show”, defendia o jornalista Gladimir Nascimento.

Sem penúria, sem narcisismo demasiado, sem jogos de poder ou psicológicos fora de controle, com humor para rir de si, o jornalismo de televisão pode ter sobrevida intelectual.

Você pode assistir à Philomena no site da BBC, e em uma série que acaba de estrear na Netflix. A hashtag #philomenacunk no Instagram tem trechos bons.

Referências

ABNT
SGARBE, V.
Philomena Cunk é uma documentarista ignorante, porém equipada
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Lab Jornalismo 2050.
Curitiba,
2023
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Disponível em:
https://www.jornalismo.digital/lab-jornalismo-2050/gestores-atentos-a-realidade-das-equipes-tem-mais-sucesso
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Acesso em:
Data de hoje
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