Dallagnol quer que o Brasil resolva um problema dele

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Vinícius Sgarbe
Vinícius Sgarbe
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Lab Jornalismo 2050®.
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Lab Journalism 2050®.
Data da publicação original:
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27/5/2023
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Acerta o noticiário de transmitir ao vivo o pronunciamento do ex-procurador e ex-deputado federal pelo Paraná, Deltan Dallagnol, nesta quarta-feira (17), mas acerta com a ressalva de que pode haver algo sádico em rede nacional. A decisão da perda de mandato saiu ontem, e ele se defendeu hoje. Como é de conhecimento geral, ele foi cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o que divide opiniões de pessoas sérias. Há quem considere que foi um erro jurídico, e quem defenda a interpretação e o voto do ministro Benedito Gonçalves. Neste texto, essa discussão está superada.

Eu tinha acabado de chegar de um compromisso na universidade quando liguei a televisão e dei de cara com Dallagnol junto a um grupo no mínimo intrigante, explicando aos brasileiros que a maldade tinha vencido no Brasil porque ele perdeu na Justiça. Um narcisismo flagrante, uma megalomania, um fundamentalismo protestante, um pouco de cada coisa? Ou, ao contrário, a ausência de qualquer coisa?

Com muita franqueza, eu estava esperando por uma fala marcante, mas não imaginava quanto marcante ela realmente seria. É um vexame histórico para se usar nas aulas de psicanálise e de comunicação política. Se pode funcionar a ponto de devolver a ele um prestígio ridiculamente superfaturado? Pode. Especialmente do povo do meu estado posso esperar que o tornem prefeito da capital (mesmo sem qualquer experiência dele em governar, porém suficientemente branco e rancoroso).

Não tenho por hábito comemorar trapalhadas da vida pública. Fico com vergonha quando nossas autoridades são investigadas ou presas, ou qualquer coisa dessa categoria. Então, não há o que celebrar na cassação desse senhor, tanto quanto não há, pelo menos da minha parte, qualquer lamento. Talvez tenham esquecido de avisar a ele como as coisas funcionam na política. Ou teriam esquecido subitamente todos os políticos da maneira como Dallagnol a eles denominava e desprezava? O que que esse cara estava esperando? Será que foi com essa ingenuidade que ele chefiou a Lava Jato?

Do ponto de vista de alguns amigos que não somente apoiam Dallagnol como também tem pouco ou nenhum apreço pelo Partido dos Trabalhadores ou Lula, que em parte combatem veementemente esses dois últimos, a prática moral também se dá quando é preciso encarcerar (ou matar) um indivíduo perigoso. A contar pela fala do herói, hoje, é absolutamente moral afastá-lo da vida pública enquanto for incapaz de compreender que a política é uma experiência comunitária, e que o que importa é o que o outro pensa. Que é assim que se constrói.

Arrogar-se herói

O discurso desse homem não me ofende, mas me preocupa em termos civilizatórios. Mais uma vez um “irmão”, um igual, um “bostinha que nem nós”, esbraveja: “eu vou salvar vocês”. Meu senhor, eu e o pessoal que eu conheço não vos pedimos nada. O senhor se comparou a José do Egito (uma salva de palmas à novela da Record!), a Jesus. Sabe o que vos falta? Ler um pouco mais os Evangelhos. Tem alguma coisa que o senhor interpretou à Lava Jato no texto bíblico, se é que me entende.

Nas últimas semanas, tenho me inclinado às perspectivas psicológicas das escolhas de líderes. Em linhas gerais, aqueles que são eleitos para governar correm riscos enormes – o de serem assassinados, inclusive (m.q. facada do Bolsonaro). Tornar-se uma paixão da massa requer ofertar a essa massa proteção e assistência. Quando esses elementos se tornam escassos ou cessam, e aquela liderança não tem mais serventia (depois de juntar mais de 300 mil votos para um partido, por exemplo), então é linchado por quem o laureou. Nesse ponto, há uma conexão com Jesus mesmo, porque foi crucificado por quem o recebeu com ramos.

A mesma imprensa que noticiou Dallagnol como a salvação do país o expõe em um papel humilhante de criança chorante. “Mas isso só acontece comigo”, “por que não fazem isso com o Gilmar?”, “até o Beto Richa tem mandato”. Então atravessa para uma criticidade raivosa pela qual ele poderá livrar a todo o Brasil de um mal temido por ele.

Se tomamos por verdade que os indivíduos são responsáveis por seus caminhos, podemos nos perguntar, então, a pergunta da criança: “por que Beto Richa tem mandato e Dallagnol é cassado?”.

Referências

ABNT
SGARBE, V.
Dallagnol quer que o Brasil resolva um problema dele
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Lab Jornalismo 2050.
Curitiba,
2023
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Disponível em:
https://www.jornalismo.digital/lab-jornalismo-2050/gestores-atentos-a-realidade-das-equipes-tem-mais-sucesso
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